Poesia

Olhos Limpos

Quantas cores ecoam
de uma folha seca?
Qualquer resquício que caia
de árvore alguma
será transformado
em matéria prima,
assim na Terra como
por sob a pele da alma do poeta,
que busca manter-se adequado e ativo
em seu ofício diurno de jardineiro
Todos os restos
varridos por um só – adubo
Sonho de um mundo novo
de microrganismos,
pós-putrefato

O que está em declínio
converte-se
em ascendente

Nunca sentir que se é
desperdício de tempo
Pois todo o trabalho, toda a nuance
é chance de epifania
E nenhuma quebra de expectativa
é vista como desventura
Até que se alcance a coragem que leva à virtude
de fazer do estudo – ofício, e do ofício – virtude
Virtude que, quanto mais se usa, mais se lapida

A obrigação do poeta:
Reparar num instante que,
sob luminosidade específica,
todas as cores ao redor
atingem certa
equalização sonora,
que me traz lá do Eu
e me rasga o peito,
me aflora e me cura
numa projeção fractal
Ordem oculta revelada
em dobro
através do caos

Contemplar essa música visual
com os olhos limpos
antes de varrê-la,
abrindo espaço para novo acorde
Sem se perder
no reter-retratar
da visão, afinal,
a Grande Beleza
nunca é expressa com perfeição
por mão humana,
como diria José Velasques
A vida em cada detalhe
é divina, mas sempre profana
é a tentativa da reprodução
de sua totalidade

E quando eu desejo parar de varrer com o rastelo
para observar o repertório da natureza
numa tela aleatória
que nasce noir
para que eu pinte no eterno
com a imaginação – eu paro e observo
Perco o emprego,
mas não
a Graça

E quando, em plena aula, me vejo esboçando
um desenho qualquer – eu deixo vir e traço
Perco conteúdo, mas me recarrego
Sou cocriador de minha atmosfera

Renascimento é renúncia ao que não mais me plasma
Cortando cordões que nos ligam ao passado

É através do umbigo que sou poeta
Aceito o que recebo, e isso basta

Somente admito
o que está à minha espera

Ah, âmago meu!
Quanto menos arranco-lhe as pétalas,

mais bem me quer

Eduardo C Laurent Eduardo C Laurent Autor
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