Poesia

Despedida

Sutilmente o contraste de temperaturas libertou as lágrimas.
Banhavam as lembranças, fazendo-me lembrar das mentiras.
Quem disse que deixar a alma falar pelos olhos acalma a mente?
O descontrole nos soluços e a terrível vontade de despertar...
Velejar pelo oceano de tristezas machucando as cicatrizes.
Há feridas invisíveis que latejam mais que a própria dor.
E mesmo abraçados, tocá-la parecia uma tarefa insuportável.
Ter que sentir a verdade, ser sugado para o mundo real, a sufocante realidade.
Quais são os piores gritos? O desespero?
A garganta dolorida não queria esquecer o momento trágico.
Tentar alcançar uma alma que se desprende do corpo...
Tentar burlar as leis da natureza...
Tentativas improfícuas, desperdiçadas, a voz exasperada falhando.
Seria possível impedir o fim de outrem?
Só quando o som se extinguiu entendi que não...
Quando o último miligrama da alma evaporou, compreendi...
Acabou... E mesmo assim eu queria misturar os tempos verbais...
Resgatar nas lembranças o que ficou dela...
Materializar sua consciência e fazê-la rir uma ultima vez...
Fazer-me rir, acalmar parte das minhas aflições...
Como se acostumar com a ausência da nossa própria sombra?
Recordei-me da comparação... Do agressivo apelido: sombra.
Irritava-me a demasiada preocupação...
A maternidade pressupõe entrega, dedicação e cuidado...
Agora quem suprirá minha sede de conselhos?
Irrito-me com a ideia de que tudo pode ser substituído...
O espaço por ela preenchido será preservado...
Contudo, ocorre-me que já não tenho ideia do caminho que devo trilhar.
Era dela a confirmação de minhas escolhas...
Ainda posso escutar o som de sua voz me censurando...
O som de seu riso, seus abraços tímidos e intensos.
Minhas rimas despedaçadas tentaram dar o ultimo adeus...
Então é assim que se sente uma mãe?
Deve ser essa a dor da separação...
Quando o cordão umbilical é rompido...
Quando o corpo deixa de ser um só e passa a ter autonomia.
E progressivamente aquele corpinho luta pela autossuficiência.
Diariamente conquistando, aprendendo, crescendo.
Até dar o primeiro passo e o que fica pra trás parece irrelevante.
Entretanto uma mãe chora, mas pode requerer seu pequeno.
Desconheço a direção do olhar...
Os protocolos são rompidos quando você percebe o fim.
Eis que minha mão, talvez mais sensata que meu peito, move-se.
E sente a gélida superfície do corpo inerte.
Desvio o olhar úmido, irrigado pelo rio salgado enterrado em mim.
Uma parte do meu eu morria ali... Uma parte bonita e indescritível.
Meu cadáver vivo queria um querer impossível.
Queria romper as linhas indestrutíveis do tempo.
Fazer dos rastros dos ponteiros focos de realidade.
E por mais que me esforçasse era um empreendimento falido.
Que lâminas afiadas eram aquelas que tinham encontrado abrigo no meu ventre?
Um ardor de derrota que parecia ignorar os suspiros condescendentes.
Já não basta ter que sofrer com a única parte viva que restava: a lembrança?
O excesso de conformismo me esmagava.
Os soluços adormecidos transbordaram...
Não! Ninguém conhecia aquela dor... Era minha dor...
As palavras furtadas se transformaram em monossílabos de negação.
Minha mão tocava o rosto do recipiente...
Horas antes uma consciência habitava-o.
Quem sabe outrora, vendo-me ruir, ela me acalentasse...
Sem sombras de dúvidas ela me acalmaria...
Somente espectros apáticos me rondavam...
E a sombra que mais queria recuperar não existia mais.
O manto de madeira seria sua companhia, sua casa e seu mais forte abraço.
Aquele maldito manto rígido que me apartava do seu toque.
E algumas dezenas das invejosas rosas que camuflavam o seu cheiro.
Ainda me permito cair sobre sua cama e sentir aquele perfume indescritível.
A fragrância que eu sou acostumado desde criança.
O bálsamo que me fazia bem, mesmo quando ela não estava presente.
Alguns não entenderam, cobraram-me versos na despedida.
Versos de despedida... Versos que não sei prover.
Mas... Como falar se os poemas não saem?
Como traduzir o silêncio em palavras?
Meus rascunhos perderam a tinta... Já nem sei a cadência da arte.
Permaneci tácito, o som do meu pranto foi minha única homenagem...
Uma despedida não racional, medida pela dor...
Sabe da dor apenas quem dela sorveu...
Cogitar-se-á sobre o sofrimento sem nunca entendê-lo.
Até que o primeiro espinho rasure a pele virgem.
Quanta inveja eu tinha das crianças...
Vê-las ensopadas de carinhos, de abraços e cuidados.
E meu coração insistia em pulsar forte empurrando as lágrimas.
Eram poemas corruptos os que falavam do pranto derramado.
A farsa caiu dos meus olhos, as lágrimas não esvaziavam o sofrimento.
Apertei aquelas mãos gentilmente posicionadas sobre o peito materno.
Mãos inanimadas... Despidas de cor...
Foi a madrugada mais longa da minha vida.
A noite que os olhos não encontraram descanso.
Os raios do sol matutino formavam feixes de luz em torno do esquife...
Deslizando nas águas do inconsciente desespero...
Levando a imagem materna para outra margem...
Uma margem inalcançável aos mortais...
A luz era tragada pelo negrume das vestes que circulavam o caixão.
A calma nos olhos das vitimas da perda era desesperadora.
Não teve poema, somente lágrimas cobrindo cada grão de areia...
Uma terra úmida, a lama do devir separando os laços materiais...
É quando se percebe que o que se vai é efêmero...
Tudo deixará de existir, somente os sentimentos e as lembranças permanecem.
O que é vivo não é imutável.
E quando a ultima rosa fora lançada foi que a dor deixou de doer.
Deixou de latejar... Ocorreu-me um pensamento rebelde:
Uma avó rindo abraçada aos netos.
Observei os netinhos correndo inocentes pelo cemitério...
Eram os únicos que riam...
Quis rir, transcender, ser criança e as lágrimas cessaram.
Pude finalmente me desgrudar da rosa...

Alisson M S Carvalho Alisson M S Carvalho Autor
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