Poesia

Capoeira de Angola

“[...]Tava na beira do mar quando curió chegou
Tava na beira do mar quando curió chegou
Com pandeiro e atabaque, berimbau e agogô
Com pandeiro e atabaque, berimbau e agogô
Vai rolar vai rolar capoeira de angola na beira do mar
Vai rolar vai rolar capoeira de angola na beira do mar[...]”

A musicalidade lhe soava aos ouvidos como brisa marinha. Era tudo aquilo, assim mesmo, meio indefinido. Já fazia algumas semanas que procurava entender o motivo pelo qual tantos acontecimentos tumultuavam sua vida. Se perguntava se talvez teria ela alguma, senão culpa então responsabilidade que fosse. Não, não sabia a resposta, e ainda estava ali, a ouvir e refletir sobre a letra e gingado da Capoeira de Angola.
Lembrou dos tempos do grupo, aliás, sempre fora muito afeita à grupos. Estava acostumada a vida inteira a lidar com grupos, trabalhar em grupos. Considerava-se uma pessoa sociável e não tão difícil de se relacionar, todavia estava sempre a se questionar sobre o que seriam os relacionamentos, quais seriam suas bases, o que sustentariam suas estruturas.
Durante um tempo se dedicou a estudos sistemáticos das relações humanas, desde as paqueras e trocas de olhares nas festas à ansiedade que tomava de conta depois do primeiro encontro.
Estava definitivamente convencida de que havia um padrão, algo em comum em todas essas parecidas, porém nem por isso menos ridículas, histórias de relações humanas. Bicho homem, bicho gente. Quais os seus nichos?
Esvoaçou-lhe pela memória a lembrança de Gregor Sansa tentando desesperadamente volver a carcaça para cima depois de ter caído de costas no chão. E aquele pedaço de maçã invadindo suas costas? Nunca havia imaginado nada mais surreal que as costas sendo invadidas por um pedaço de maçã. E ele que não pudera fazer nada, nem sequer mastigar a maldita fruta.
Então, era assim que se sentia em tantos momentos salvadorianos. Era como se tivesse em eterna batalha travada contra um inimigo às suas costas e que, aparetemente, não lhe poderia prejudicar em nada. Comparação bizarra, grotesca até, porém válida e verdadeira.
O telefone ali, parado, imóvel e mudo. Ele nada era capaz de fazer. Não reagia, o infame. Não importava quantas vezes ela olhasse para ele, não importava quantas vezes ela o ameaçasse arremessá-lo contra parede, ele simplesmente a encarava e, silenciosamente, repetia “se me atirares, aí sim não tocarei de jeito algum”, e ela, vencida pela defensiva do aparelho, derrotada pela sutil certeza de que o ingrato tinha razão, baixava a guarda e continuava a espreitá-lo.
Seria melhor procurar outra coisa para fazer além de olhar fixamente para o telefone como se seus olhos emitissem algum tipo de radiação capaz de fazê-lo vibrar e cantar e mais, capaz de se fazer ferramenta no enlace de dois corações.
Ah, como seria feliz se tudo fosse lindo, assim como ela imaginava, mas a coisa era diferente..
Algumas páginas na internet depois, vãs tentativas de ler ou etudar alguma coisa, ainda teve a vez da televisão, que não se fez de rogada e insistiu em veicular programas tão desinteressante que ela se convenceu de que era melhor assistir ao celular mudo, especulando os mais absurdos motivos e/ou jutificativas para ele não ter ligado.
Só porque faziam menos de 48 horas que haviam se falado? Besteira!
Por que não poderia ela ligar a cada 15 minutos até ele atender, sem correr o risco de ser taxada de psicótica?
E continuava a olhar, a cantiga ainda repeat em seu pensamento:

“[...]Tava na beira do mar quando curió chegou
Com pandeiro e atabaque, berimbau e agogô
Vai rolar vai rolar capoeira de angola na beira do mar[...]”

E porque a música não tinha, em absoluto, nada a ver com seu dilema ela desistiu de tentar entender. Concluiu que a música em sua mente quase insana era o simbolismo de sua situação caótica: não fazia o menor sentido para o momento, não retratava suas angústias e não era consolo para sua estúpida dor.
O telefone tocou, ela atendeu. Era a secretária da operadora querendo fazer uma pesquisa de campo, para quem ela afirmou estar deveras ocupada. Não podia ajudar, estava muito atenta esperando o telefone tocar.

Denise Veras Denise Veras Autor
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